quarta-feira, 17 de setembro de 2014

39 anos sem Vlado: Como a morte de Herzog influenciou o jornalismo e as lutas sociais brasileiras

(Resenha do livro "As duas guerras de Vlado Herzog. Da Perseguição Nazista na Europa à Morte Sob Tortura no Brasil)

Luta, esperança e busca por justiça são só alguns dos ingredientes do livro vencedor da categoria “Não ficção” na 55º edição do prêmio Jabuti de memórias. Mais do que um relato sobre a vida do jornalista Vladimir Herzog, “As duas guerras de Vlado Herzog. Da Perseguição Nazista na Europa à Morte Sob Tortura no Brasil", escrito pelo também jornalista Audálio Dantas, representa a história do jornalismo brasileiro durante o período da ditadura militar e simboliza a luta de todos que, de uma forma ou de outra, foram atingidos pela repressão e autoritarismo do regime que marcou o país durante vinte e um anos. Publicado pela editora Civilização Brasileira em 2012, “As duas guerras de Vlado Herzog” inicia-se com a história do pequeno Vlado, um jovem judeu nascido na Iugoslávia que, aos seis anos de idade, encara sua primeira perseguição política. Refugiado com a família na Itália, o jovem precisa adotar o nome “Aldo”, comum naquela região, para que os Herzog não fossem descobertos e acabassem em campos de concentração, destino que, infelizmente, fez parte da vida de muitos judeus durante a ditadura de Hitler. Ditadura, aliás, seria a palavra que perseguiria Vlado por toda a vida. Em busca de um futuro melhor para a família, Zigmund e Zora  fugiram para o Brasil com o filho sem saber que, 29 anos depois, Vlado seria morto no país vítima de outra perseguição por motivos políticos. Em 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog foi assassinado dentro dos perímetros do DOI-Codi , mas seu exemplo na busca de um jornalismo que de fato cumprisse com a obrigação de prestar um serviço à sociedade não foi calado.

Apesar da história de Vladimir Herzog ser o ponto de partida da história, “As duas guerras de Vlado” amplia o debate sobre a ditadura militar aos outros jornalistas e militantes da época. Nomes como Luís Weis, Alberto Dines, Ronaldo Costa Couto, Rodolfo Konder, Duque Estrada e Fernando Pacheco Jordão estão entre os que têm sua história revelada no livro. O grande volume de histórias de diversos jornalistas pode até cansar a leitura de alguns, mas como não se emocionar com a história do casal Paulo Markun e Diléa Frate, que por pouco não perderam o batizado da própria filha? Diléa, que ao chegar a umas das celas do DOI-Codi foi chamada de menina por uma das presas, teve coragem o suficiente ao expôr seu instinto materno de quem sofre longe do filha, tirando o capuz que cobria seu rosto e confrontando seu agressor ao perguntar “O Senhor não acredita em Deus, não tem família ?”.

Mais do que um livro sobre confrontos, “As duas guerras de Vlado” situa-se como um livro sobre a coragem. A dor do autoritarismo não era sentida apenas no corpo de quem sofria com as imposições do regime. A mão da ditadura feria também os familiares que, sem notícias de seus parentes, recebiam as mesmas doses severas de castigos. Nos porões do DOI-Codi ou nos cômodos de um lar que já não mais se encontrava completo, a dor competia espaço com a esperança: Uma esperança que não deixa a memória ser enganada pelo tempo ou pelas verdades impostas. Uma esperança que, 50 anos depois do início da ditadura, ainda encontra vestígios como a revelação de como teria sido morto o ex- deputado Rubens Paiva .

O caráter reflexivo sobre o período da ditadura exposto por Audálio Dantas pode ser comparado ao também vencedor do prêmio Jabuti de memórias em 1982, o livro “Batismo de Sangue” escrito por Frei Betto. O livro de Betto, porém, consegue traduzir de maneira mais poética o cenário do jornalismo e das torturas sofridas durante o militarismo, como se percebe no trecho abaixo: "Os acólitos do regime adaptavam-se, substituíam o noticiário cortado, antecipavam-se à tesoura do censor, exercendo, sem escrúpulos, um aprendizado que faria escola no jornalismo brasileiro: a autocensura. A insólita lição ensina que o bom profissional deve alienar-se de suas ideias e convicções para escrever como o patrão escreveria e editar como o governo editaria. Não é apenas a força de trabalho alugada sob o imperativo da sobrevivência, como a prostituta que se oferece na esquina. É a própria consciência adulterada, associando autoridade e verdade, como o torturador de dentes cariados e salário-mínimo afoga a sua vítima numa banheira em defesa de uma liberdade que ele não usufrui." (Betto, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 9.ed.Bertrand Brasil, 1987.77p)

Mesmo rico em informações, como os detalhes da situação em que se encontrava a Europa durante a guerra e a maneira como o sindicato dos jornalistas se organizava no Brasil durante a ditadura, o livro peca em falta de organização. Apesar de não ser necessário seguir uma linha cronológica, Audálio repete muitas vezes a mesma informação. A data da morte de Vlado e a maneira como este foi morto, por exemplo, aparece em várias páginas do livro. O mesmo ocorre com a frase “Os porões da ditadura” ou “os porões do DOI-Codi” que também foi destacada muitas vezes por Dantas.

A alternância de datas e fatos históricos faz-se frequente em toda a leitura, o que cansa e às vezes até confunde o leitor. Mesmo com o grande peso dado aos fatos históricos, o livro carrega em suas páginas um caráter emotivo. Audálio acerta ao expor os conflitos psicológicos sofridos pelas vítimas da ditadura, tanto nos relatos das prisões e torturas, quanto no trecho em que fala sobre a passeata na Praça da Sé que reuniu muitas pessoas em São Paulo após a morte de Herzog. A história do juiz Márcio José de Moraes, que aos 32 anos, assumiu o julgamento do caso de Herzog após a aposentadoria do juiz Martins Filho e condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vlado, também é um dos fatos que merecem destaque no livro, sendo  o desfecho da luta pela comprovação de que Herzog fora assassinado pelos militares. Mais do que isso, a justiça feita no caso de Vlado representou um grande passo rumo a retomada da democracia.


“As duas guerras de Vlado” é uma boa recomendação para quem quer aprofundar o estudo sobre um dos períodos mais negros da história brasileira, mas, ao expor tanta informação e, por vezes, repetir demais a mesma passagem, o livro de 394 páginas também pode ser facilmente deixado de lado. 

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